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Por que um Procurador da República deve ser impedido de expressar suas convicções religiosas?

Atualizado: 2 de ago. de 2023

Houve tempo neste país que para ser detentor de cargo político era requisito ser católico. A Constituição do Império (1824) tinha a religião católica como oficial e previa que além da família real, os agentes políticos também professassem a religião católica. Com a proclamação da República e o advento da primeira constituição republicana, em 1891, houve a instituição de um estado laico com total separação entre Igreja e Estado.

A partir de 1934, as constituições brasileiras, embora não mais endossassem uma religião oficial, passou a adotar um modelo de cooperação entre o Estado Brasileiro e as confissões religiosas. Esse modelo permanece na Carta da República de 1988, promulgada ‘sob a proteção de Deus’ (ver preâmbulo da Constituição) e pode ser observado nos seguintes dispositivos (que extrapolam a mera defesa da liberdade de crença):

proteção estatal aos locais de culto e às práticas religiosas (art. 5º, VI, ver também Código Penal, art. 208);direito de ingresso das entidades religiosas em locais de internação coletiva, sejam civis ou militares, para fins de assistência religiosa (art. 5º, VII);possibilidade do Estado estabelecer com entidades religiosas colaboração de interesse da população (art. 19, I, ver também Lei nº 9.790/99, art. 2º, III);dispensa do serviço militar para eclesiásticos (art. 143, §2º).


Não obstante seja o acima o que está consagrado em nossa Constituição e nas leis brasileiras, nos últimos anos persiste uma lenta e gradual difusão – por parte de setores da mídia e da classe política – de um determinado conceito de “Estado laico”, tentando fazer impregnar nesta expressão um significado que possa num momento futuro inviabilizar qualquer discussão objetiva. Edward E. Ericson Jr., professor emérito do Calvin College, Michigan, USA, se refere àqueles que usam palavras “de modo muito impreciso para referir-se a qualquer conjunto de idéias que as pessoas tenham”. É isso o que observo acontecer com a expressão “Estado laico”: a tentativa de transformar essa expressão num lugar-comum.


Tenho lido cada vez mais sobre laicidade do Estado. Mas o que me motivou a escrever foi quando me deparei com a reportagem: Dallagnol tenta pôr Lava Jato acima do bem e do mal (28/07/2015), de Paulo Moreira Leite. A reportagem se refere a um ofício religioso assistido pelo jornalista Bernardo Mello Franco, da Folha de São Paulo, no qual relata ter presenciado Deltan Dallagnol, Procurador da República que preside as operações da Lava-Jato, falar da tribuna da Igreja Batista da Tijuca, depois de ser apresentado como “servo” e “irmão”, que ‘acredita que Deus colabora com a Lava Jato’, acrescentado que ‘dentro de sua cosmovisão cristã, acredita que existe uma janela de oportunidade que Deus está dando para mudanças’. Daí, o colunista passa a criticar a postura de Dallagnol, evocando a Revolução Francesa de 1789 até chegar à máxima do “Estado laico”.

Antes de comentar trechos específicos da crítica de Moreira Leite ao Procurador da República, é importante voltar ao início do seu artigo. Na abertura, o colunista diz: “Nunca tive religião”, mas acrescenta que manteve contato com diversas religiões em ocasiões nas quais razões sociais lhe impunham a obrigação de comparecer: casamentos, batizados e funerais. Seu contato com o mundo religioso também se deu com diálogos com representantes de algumas confissões religiosas e a leitura de alguns romances. O colunista se diz satisfeito. Em sua visão, essa situação o “ajudou a ter um convívio enriquecedor com várias correntes religiosas, usufruindo da diversidade cultural de nossa época, a partir da compressão de que a diferença não nos afasta, mas pode nos aproximar e fortalecer”. É curioso Moreira Leite achar necessário fazer essa ‘quase’ justificativa antes de fazer as críticas que fez a Dallagnol. Deve ser o impulso do “politicamente correto”.

Plagiando o próprio Moreira Leite, me confesso escandalizado com suas revelações de espanto [“me confesso chocado”] ante a notícia de que o Procurador da República, sendo evangélico, crê que seu trabalho é guiado por Deus. Fico ainda mais ‘chocado’, quando ele afirma isso depois de discorrer sobre o seu “convívio enriquecedor com várias correntes religiosas”. Penso que Moreira Leite precisa de um convívio maior para entender o que é religião e, portanto, entender o seu próximo.


Vamos aos comentários de pontos específicos da reportagem:

A Lava Jato é uma operação policial feita por homens de carne e osso, com qualidades e defeitos . . . Cabe estranhar que [Dallagnol] . . . , tente apresentar a Lava Jato num patamar acima de toda crítica, sugerindo que se trata de uma obra divina.

Infelizmente o colunista resolveu julgar o Procurador Dallagnol apenas com base no seu chamado ‘convívio enriquecedor’, sem reservar tempo para fazer uma pesquisa mais qualificada. Moreira Leite fala do que viu, do que acha. Se o colunista, que se diz ‘tolerante’ e capaz de ‘entendimento’, tivesse tirado tempo para ler alguns versículos da Bíblia (base doutrinal dos evangélicos), teria entendido o que Sr. Dallagnol quis dizer, se é que não entendeu. Vejamos apenas alguns trechos:

Tudo de bom que recebemos e tudo o que é perfeito vêm do céu, vêm de Deus, o Criador. (Tiago 1:17, NTLH) Tudo o que fizerem, façam de todo o coração, como para o Senhor, e não para os homens. (Colossenses 3:23, NVI) Consagre ao SENHOR tudo o que você faz, e os seus planos serão bem-sucedidos. (Provérbios 16:3, NVI) Recomendo que se façam súplicas, orações, intercessões e ações de graças por todos os homens, pelos reis e por todos os que exercem autoridade, para que tenhamos uma vida tranqüila e pacífica, com toda a piedade e dignidade. (1 Timóteo 2:1, 2, NVI) Em tudo dai graças. (1 Tessalonicenses 5:17, ALA) Eu lhes suplico, irmãos, pelas compaixões de Deus, que apresentem o seu corpo como sacrifício vivo, santo e aceitável a Deus, prestando assim um serviço sagrado com a sua faculdade de raciocínio. E parem de se amoldar a este mundo. (Romanos 12:1, 2a, NWT) É inteiramente direito . . . defender e estabelecer legalmente as boas novas [Gr.: ευαγγελιου (lit.: “evangelho”)]. (Filipenses 1:7, NM) Todos estejam sujeitos às autoridades superiores, pois não há autoridade sem a permissão de Deus, as autoridades existentes foram colocadas por Deus em suas posições relativas. (Romanos 13:1, NWT) Temos de obedecer a Deus como governante antes que aos homens. (Atos 5:29, NM)

Para o cristão, que leva sua comunhão com Deus a sério, sua vida inteira é dedicada a um “serviço sagrado” prestado a Deus. Vive em pleno reconhecimento de sua dependência da soberania de Deus. Sua devoção a Deus não é um ritual que ele faz uma vez por semana quando vai à igreja, toda a sua vida gira em torno do reconhecimento da legitimidade do governo divino. Todas as suas atividades, incluindo as seculares, para ser bem-sucedidas devem ser ‘consagradas ao SENHOR’ (cf. Provérbios 16:3). Portanto, não é algo estranho para um cristão que ele encare seu trabalho secular como uma missão divina, isso é inerente à sua crença (a qual o Estado tem a obrigação de respeitar). Por exemplo, um cristão que trabalhe na limpeza urbana deverá encarar seu trabalho com toda seriedade, orará pedindo a orientação de Deus para que faça um bom trabalho, porque Cristo não espera menos dele (cf. Colossenses 3:23, ver também Mateus 7:12; 19:19). Da mesma forma, um cristão que estiver exercendo uma função de responsabilidade no Ministério Público deve encarar seu serviço com a mesma seriedade, sabendo deverá prestar contas a Cristo por todos os seus atos (cf. Efésios 6:9, ver também 2 Coríntios 5:10). Quando o cristão está bem apercebido de sua responsabilidade para com Deus em seu trabalho secular, isso faz com que seu trabalho seja de qualidade porque não o faz apenas ‘ostensivamente’ para agradar seu empregador, mas presta-lhe um bom trabalho em vista de sua responsabilidade para com Deus. (cf. Efésios 6:6). Isso não significa que o cristão usa a Bíblia ou sua liturgia diretamente em seu trabalho, mas que seus princípios de vida baseados na Bíblia nortearão sua conduta no trabalho e por isso ele conta com a aprovação e a bênção de Deus.


Com base no exposto no parágrafo anterior, quando o Procurador da República diz em sua comunidade religiosa crer que Deus abençoa seu trabalho na operação Lava Jato, em hipótese alguma isso implica em transformar uma operação policial e judicial numa “obra divina” acima de quaisquer questionamentos, como entendeu o colunista Moreira Leite. Evidentemente, Dallagnol deve basear sua atuação profissional na constituição e nas leis da República, como qualquer outro Procurador, mas isso não o impede de ter crenças pessoais e sentimentos religiosos relativos ao seu trabalho, pois a Carta da República é bem clara nisso, no seu Artigo 5º, inciso VIII: “Ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política” [1] (grifo acrescentado).

Outro trecho da reportagem diz:

Se isso é feito [i.e. por Dallagnol] por puro marketing, é desprezível. Se apoia-se numa crença verdadeira, hipótese em que acredito, é mais grave ainda – pois, através de convicções religiosas, exprime um absurdo viés antidemocrático, anterior à Revolução Francesa de 1789. Em qualquer caso, é uma postura estranha – eu diria incompatível até – com a justiça dos homens.

Aqui Moreira Leite coloca em discussão a sinceridade de Dallagnol. São duas opções:

(a) o Procurador age por oportunismo [“puro marketing”];

(b) o Procurador está sendo sincero em suas convicções.


O colunista aposta na alternativa “b” e por isso acha – acreditem! – muito mais desprezível do que se Dallagnol estivesse sendo um oportunista. Leia novamente o trecho acima. É exatamente o que Moreira Leite diz.


Reflitamos agora: Qual é a convicção religiosa de Dallagnol que Moreira Leite considera muito mais que “desprezível”? É a crença pessoal de que Deus possa intervir nos assuntos humanos. Sinceramente, leitores, vocês conseguem ver nisso algo “desprezível”?

Moreira Leite tenta fornecer musculatura para seu argumento [i.e. de que a crença de Dallagnol é desprezível] citando a Revolução Francesa. Ele afirma que a crença do Procurador tem um “absurdo viés antidemocrático”. Evidentemente esse argumento só convence quem nada conhece da Revolução Francesa ou apenas sabe alguma coisa que lhe foi dita nos bancos escolares por professores nada imparciais. Talvez, o colunista ache que Dallagnol, em vez de proceder de acordo com o estado democrático de direito, deveria agir como o Robespierre (1758-1794), protagonista da Revolução Francesa, que achava que a religião organizada era inimiga e que a pretexto dos ideais democráticos enviou agentes por todo o País para descristianizar a população, instituindo uma religião civil para substituir o cristianismo. Robespierre intensificou o Terror por meio de um verdadeiro massacre nas guilhotinas matando qualquer suspeito de ser contra o governo revolucionário, sem julgamento, incluindo 8.000 sacerdotes. Talvez para Moreira Leite, esse “príncipe” da Revolução Francesa deveria ser a inspiração “democrática” do Procurador Dallagnol.


A partir desse ponto Moreira Leite passa a discutir a questão da laicidade do Estado Brasileiro.

Aprendemos que o bom Direito se revela através do conflito e do contraditório, como conciliar essa noção . . . com noções divinas . . .? Deltan Dallagnol é procurador da República, num país onde o artigo 127 da Constituição diz que o “Ministério Público é . . . [incumbido d]a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.” . . . No artigo 19, inciso I, se afirma que é “vedado a União, Estados e Municípios estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público”. São regras importantes. O Estado não pode perseguir religiões. Também não pode ter preferências. . . . É esta “ordem jurídica” que cabe a um procurador desta República defender. E só. Alguma dúvida?”

As únicas acusações feitas ao Procurador se referem a suas crenças religiosas pessoais (já discutidas) e incluem o pedido de apoio a “um abaixo-assinado favorável a um projeto de lei do Ministério Público que pedem mudanças na lei contra corrupção”. Projeto esse já encampado por diversas entidades respeitáveis, como por exemplo o Conselho Regional de Engenharia e Agronomia de São Paulo – CREA-SP.

O palavrório do Sr. Moreira Leite transcrito acima é apenas citações das leis e em nenhum momento ele dá evidências de que o Procurador as descumpriu. Das acusações feitas à Dallagnol, qual delas:

  • prejudica a ordem jurídica?

  • atenta contra o regime democrático?

  • atenta contra os interesses sociais e individuais?

  • indica que o Procurador estabeleceu culto religioso estatal ou subvencionou alguma entidade religiosa ou fez algum convênio com elas?

Em nenhum momento os fatos narrados indicam qualquer ofensa aos preceitos constitucionais ou legais. De modo oposto e análogo, o que é sugerido por Moreira Leite, se implantado pelo Estado seria uma afronta ao artigo 19, inciso I, da Constituição, que prevê que o Estado não pode ‘embaraçar’ o funcionamento de nenhuma entidade religiosa (como foi feito durante a Revolução Francesa ‘democrática’).


Todo o artigo do Sr. Moreira Leite é construído na base da falácia do “espantalho”. Ele construiu uma narrativa baseada exclusivamente para ser atacada com base na ofensa ao laicidade do Estado. Se você toma sua narrativa como premissa válida, engole o argumento com facilidade, mas se tomar tempo para analisá-lo você enxerga com a mesma facilidade o tamanho do espantalho.


Espero que o Sr. Moreira Leite tão aberto à diversidade religiosa, tão tolerante, tão compreensivo, possa agora deixar de ficar chocado, sabendo que essas diferenças entre ele e o procurador evangélico não os deve afastar, mas pode os aproximar e fortalecer, abandonando a posição dogmática que expressou em seu artigo (“Eu acho . . . inaceitável”) – Ver Provérbios 15:23, NVI.

Publicado originalmente em 03/02/2016 em antoniorolimblog (WordPress).


Referências:


  • BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ConstituicaoCompilado.htm. Acesso em: 26/01/2016.

  • BRASIL. Lei No 9.790, de 23 de março de 1999. Dispõe sobre a qualificação de pessoas jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos, como Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público, institui e disciplina o Termo de Parceria, e dá outras providências. Disponível em:  http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L9790.htm. Acesso em: 26/01/2016.

  • BRASIL 247. Dallagnol tenta pôr Lava Jato acima do bem e do mal. Disponível em: http://www.brasil247.com/pt/blog/paulomoreiraleite/190620/Dallagnol-tenta-pôr-Lava-Jato-acima-do-bem-e-do-mal.htm. Acesso em: 25/01/2016.

  • BENJAMIN WILSON. The Emphatic Diaglott. New York: WATCHTOWER, 1942.

  • ESCANDE, RENAUD et al. O livro negro da revolução francesa. Lisboa: Aletheia Editores, 2010.

  • GAZETA DO POVO. Procurador da Lava Jato faz apelo à sociedade por combate à corrupção. Disponível em: http://www.gazetadopovo.com.br/vida-publica/procurador-da-lava-jato-faz-apelo-a-sociedade-por-combate-a-corrupcao-2qb9pb4do3z0zj376nntqtd7h. Acesso em: 26/01/2016.

  • INSTITUTO HUMANITAS UNISINOS. O procurador na igreja. Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/noticias/545100-o-procurador-na-igreja. Acesso em: 25/01/2016.

  • KIRK, RUSSEL. A política da prudência. São Paulo: É Realizações, 2013.

  • KOHLENBERGER, JOHN R; SWANSON, JAMES A.; GOODRICK, EDWARD W. The exhaustive concordance to the Greek New Testament. Michigan: ZondervanPublishingHouse, 1995.

  • WATCH TOWER BIBLE AND TRACT SOCIETY OF PENSILVANIA and INTERNATIONAL BIBLE STUDENTS ASSOCIATION. The Kingdom Interlinear Translation of the Greek Scriptures. New York: WATCHTOWER, 1985.

  • Traduções Bíblicas:

  • ALA       Bíblia Sagrada, de João Ferreira de Almeida, Edição Revista e Atualizada no Brasil (1969).

  • NM       Tradução do Novo Mundo das Escrituras Sagradas (1986).

  • NTLH     Bíblia Sagrada – Nova Tradução na Linguagem de Hoje (2000).

  • NVI        Bíblia Sagrada – Nova Versão Internacional (2000).

  • NWT      Tradução do Novo Mundo da Bíblia Sagrada (2015).

  • [1] O artigo 5º, inciso VIII, se aplica a todos os brasileiros, incluindo os procuradores da República.

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